… D’ O homem que Odiava Domingos!

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... Lembro-me que estava sol mas também estava frio. Muito frio. Ja tinham passado, há vários anos, os trinta mas continuavam a ter laivos de adolescência. Chegaram à cidade que não dorme. Chegaram cedo. Iriam passar mais um ano na cidade onde já tinham passado alguns. Espanha tem coisas que mais nenhum lugar tem. Era começo da tarde e com os olhos postos um no outro, depois de deixarem a bagagem num hotel que já conheciam de outra data igual, desataram a correr com a fome colada aos calcanhares. "Comida de porcaria". Era isto que gostavam de comer quando abandonavam a rotina. Lembro-me da fome, não me lembro do tempo de espera. De repente estavam os dois em plena cidade, sentados no chão, como se fossem um dos muitos que ali andavam de um lado para o outro. Comer sentado no chão, num país estrangeiro, mas numa cidade que nos é familiar não seria o fim do mundo. Seria no mínimo estranho, no máximo divertido e ali pelo meio desconfortável. Muitos molhos, poucos guardanapos "tu e a mania de poupar guardanapos" dizia um ao outro, que a olhar debaixo quem passava limpava os dedos no papel grosso que cobria o tabuleiro. Tinham já passado muitos Dezembros juntos e uns quantos separados mas nunca se tinham sentado no chão de uma metrópole como o mundo inteiro de senta. Primeiro com vergonha. Depois à vontade. Mais tarde iam ouvir-se muitas vozes na rua que gritavam e um deles haveria de pular no quarto com uma nota debaixo do pé depois de fazer a lista para o ano novo. Tiraria muitas fotografias. O outro, haveria de se rir com "tamanho disparate" mas acompanhava o engolir de doze uvas ao ritmo frenético de pensar os desejos. Baralhar os desejos. Desejar. A televisão ligada os corpos meio afastados. Um dormiria mais cedo e o som do respirar estava a compasso com a televisão que se escutava sem dela se escutar nada. Nessa mesma noite haveriam de se encaixar ainda mais. Teria sido a primeira noite do novo Janeiro a saber aos dois. Naquela hora, lembro-me que estava escuro. Não havia luz na rua. Estava muito frio e da janela do quarto onde se desenhou um coração embaciado com o vapor do frio e com o quente do respirar, viu-se o acidente de um carro. Eram as extravagância do álcool a falar mais alto. Riram-se os dois e encaixaram. Ficou escuro. Escuro e quente. Os pés tocavam levemente, o ar respirava projectos. Lembro-me.                                                                                                                                                                                                   
 In: O homem que Odiava Domingos (brevemente)
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