... Sou muito de momentos exactos. Não nas datas nem nas horas, mas talvez no que aconteceu em determinada altura, como se a minha cabeça fosse um disco rígido e fizesse um backup automático do que importa ou não guardar. Deveriam ser onze da noite, já tinha acabado a primeira novela. Tomei um duche, vesti-me a preceito para a noite caseira. Camisola de alças cinzentas. Cuecas brancas. Brancas. sempre brancas. Descalço. Sempre descalço! Seria Maio, ainda não estava muito calor. A janela do quarto fechada. Noite muito escura. Lembro-me de ouvir um cão muito ao longe a ladrar. Lembro-me de passear por casa em silêncio, apenas com o som da televisão da sala ligada e um vago clicar no computador. Ouviam-se duas respirações. Uma mais ofegante que outra, mais desassossegada. Arranjei a roupa para o dia seguinte. Lembro-me que seria vésperas de segunda feira. Estou sempre indeciso no que vestir. O que me ficou bem ontem hoje já me fica fatal. Visto e dispo. Dispo e volto a vestir. Uma vez. Outra vez. A respiração vai ficando mais desassossegada. O clicar das teclas do computador mantém o mesmo ritmo. Na televisão passam anúncios antes de começar "avenida Brasil". Escolhi a roupa. Hidratei os olhos, o rosto. Vou à cozinha agarrar numa garrafa de água. Durmo sempre com um garrafa de água ao meu lado. Apetece-me comer. Não como! Entro no quarto. Ligo a luz. "Que horror que luz tão branca e tão feia!". Foi a frase que se ouviu a noite toda o serão todo, interrompida pela respiração descompassada mas nunca pelo clicar do computador. Desliguei a luz branca e feia. Liguei a televisão do quarto renovado. Liguei o candeeiro de cabeceira e nem sei a cor da lâmpada dele. Hidratei os pés e adormeci com a Carminha e o Max a fazerem das suas. Quando acordei a televisão do quarto estava no mesmo volume mas já noutra novela. Na sala o mesmo clicar de teclas. Agora mais suave. Só muito mais tarde descobri a razão. E a culpa não seria do candeeiro novo do quarto nem da intensidade da luz. Coisas da minha cabeça!
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