… As pessoas não entendem. Não percebem o cheiro, o silêncio, os olhos húmidos, o corpo frio, os braços à volta de nós, a cabeça neste lugar quando está em outro lugar qualquer ou noutro lugar quando está amarrada a este. Voltar. Perceber que só é ali, porque foi aqui. As pessoas não entendem este chão pisado devagar cheio de pedras que já foram pisadas milhões de vezes para baixo e para cima, mas que quase apetece não pisar para não magoar. Não entendem as pessoas nem se podia entender que alguém achasse que as pedras não deviam ser pisadas, para não as magoar porque muitas vezes foram chão em estado puro quando não havia mais nada. Não entendem que esta rua escura que se sabe agora que tem fim, teve alturas que parecia infinita como se não tivesse esquinas nem ninguém ao virar delas. As pessoas não entenderiam se vissem olhos húmidos de nada no meio do frio num frio que estranhamente aquece porque sabe a abraço de casa. Não há outro frio assim, nem outro lugar assim. Não sei se as pessoas entenderiam fosse o que fosse que saísse da cabeça de alguém que pisa pedras da rua mas queria flutuar nelas para as poupar porque acha que já são massacradas pela correria, pelo sol quente, pela chuva forte, pelos jovens atrás de uma bola, pelos pés encostados a elas de manhã, à tarde e à noite à espera que a manhã passe, a tarde passe, a noite passe, pisadas vagarosamente pelos pés da procissão, molhadas pelas lágrimas de um funeral. Pisadas ontem, antes de ontem, muito antes desse dia e agora. As pessoas podem não entender mas não podem tirar às pedras a história de quem as pisou. Há aqui uma ligação estranha de afecto raro entre o que era para ter sido, o que foi e o que é. Há um chão coberto de pedras postas ao acaso que parecem a preceito no caminho que cada um faz. As pessoas não entendem, mas as pessoas muitas vezes não entendem porque não se dão ao trabalho de ver onde pisam e não se lembram que se não tivessem estas ou outras pedras quaisquer nada lhes amparava os passos.
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