… Os filhos não saberão nunca o que sentem os pais até deixarem de ser só filhos e sentirem na carne a fragilidade de andar com metade do coração fora do peito. Aos filhos quase tudo é permitido e o coração aperta quando por qualquer razão deixa de o ser. Eu não tenho nenhuma dúvida que nasci para ser pai. Eu sabia o que seria e como seria. Tenho um historial de vida onde percebi que cuidar era muito além do que lia nos livros ou se via nas novelas. A dimensão do amor anda de mãos dadas com a responsabilidade. Estou à janela. Ali em baixo uma Leonor despachada de carteira ao ombro num manifesto gesto de adolescente acabada de chegar a uma das melhores fases da sua vida. Quem me dera que pudesse ser sempre assim. Que os meus olhos a vissem de cima para onde ela fosse e a pudessem orientar apenas com um sinal. O medo é tão grande em tamanho como o orgulho que se sente por ver isto. Qualquer pai dirá dos seus o melhor e terá razão. São os nossos filhos a nossa melhor obra. São eles os nossos olhos no mundo e o reflexo do que fomos plantando. Nós somos pedaços dos nossos pais. Sou muito de olhar para trás para ver se fiz bem feito. Se foi certa aquela escolha, se aquele ‘não’ fez sentido. Se tantos ‘sim’ ditos de seguida não estragariam… Acho que foi tudo no ponto certo. De certeza que nestes 15 anos errei mas não é esse erro que me inibe de rebentar de orgulho de a ver aqui de cima fazer um caminho lindo. Se tivesse que o descrever seria um caminho de Primavera. Daqueles que cheira a fresco de novidade, a novo, suave no sentido, alegre nas cores, frágil no toque. Não imagina a Leonor o amor que se lhe tem, sabendo ela que lhe temos muito amor. Talvez um dia se dê conta a sério e entenderá porque tantas vezes lhe mandei vestir um casaco, desligar o telefone, lhe pedi para não ver isto ou aquilo, insisti em falar daquilo ou disto. Os pais são todos feitos da mesma massa. Uma massa pronta a estender com a força do coração. Os filhos são o mais delicado doce. Tem de se tentar fazer tudo na medida certa sob pena de errar sem perceber onde erramos para não deixar qualquer coisa desandar como desanda uma receita. Os filhos deveriam crescer todos felizes como se fosse sempre Primavera dentro deles com temperaturas capazes de passarem dias na piscina com os amigos a rir e a fazer barulho com mergulhos enquanto os pais preparavam o lanche que não comem porque não atendem à chamada insistente. Os filhos são diamantes preciosos e os pais a caixa onde se guardam até que a caixa se abra e eles comecem a brilhar sozinhos com o respirar paralelo ao nosso. Aos filhos os pais devem tudo, porque são eles que nos travam o caminho ao mesmo tempo que o impulsionam. Os filhos só saberão o amor de serem filhos quando um dia forem pais. Até lá, vão achar tudo exagerado, dramático, insistente e muitas vezes não acham nada. Encolhem os ombros e fecham-se sozinhos à espera que os pais mudem de ideias. Os filhos são Euromilhões que ganhamos a cada vez que olhamos para eles e os vemos felizes. Nos atendem o telefone. Desabafam connosco. Querem a nossa companhia. Se reconhecem em nós. Daqui desta janela, onde tantas vezes me debrucei como filho olho agora como pai. Vejo a mesma rua, que já teve pedras de calçada que foram agora tapadas com cimento, os mesmos fios de luz e a mesma casa em frente. Vejo o mundo com os mesmos olhos porque eu vi sempre isto. O que muda é a dimensão do olhar. Se me fosse dado a escolher um desejo, escolheria vigiar sempre os passos da minha filha a esta distância. Não para saber o que faz nem para controlar, mas para acalmar o coração de pai que se inquieta com o tempo e para enviar um sinal sempre que entendesse que o caminho é por esta rua e não por outra qualquer… Se parar para pensar não teria o direito de fazer isso. Dos filhos cabe-nos respeitar as escolhas, mesmo que escolham outras ruas. Aos pais é obrigação de não saírem da janela. Se não os avistarem nesta rua, metem-se em bicos de pés para ver até onde a vista alcança, mesmo que o alcance da vista não seja o do coração. Um filho quando for pai vai assomar-se à janela e perceber que afinal, por muitas ruas que caminhe, a rua certa seria sempre esta. A rua com a janela por cima da porta que se abre ao ouvir os passos que com o avançar do tempo são mais firmes e decididos. Da janela, em bicos de pés, verá as mesmas pedras da calçada tapadas com cimento, os mesmos fios de luz que abrigam pássaros e talvez alguém estará na casa da frente, à janela, a espreitar metade do seu coração e a tentar evitar que ele esfole os joelhos neste cimento áspero que poderia ser uma cópia da vida. Porque é posto para facilitar o caminho, mas se tropeçamos nele arde. Dói. Faz ferida. E muitas vezes demora a cicatrizar. Mesmo que o pai desça as escadas a correr, abra a porta, sopre, dê um beijo e diga ‘já passou!’ Ainda assim, vai doer mais ao pai que ao filho que tem o joelho ferido no cimento. Porque o pai sabe, que nem sempre passa. Que demora a cicatrizar.
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