… Não se atrevam a subir as escadas que levam ao sótão se não estiverem preparados para abrir caixas, ver gavetas, descobrir caixotes empoeirados, olhar para roupa que já tinham esquecido, tocar em coisas ali postas um dia qualquer só porque sim. As pessoas não se dão conta, mas um dos lugares mais perigosos de casa são as escadas que nos levam ao sótão. Lá em cima está parte de um vida inteira guardada aos pedaços porque em certa altura se considerou que era o momento certo para a encaixotar, que o assunto estava resolvido, que ficava ali num canto encostado, numa divisão da casa que existe só para nos atrofiar a cabeça… O erro começa logo quando guardamos pedaços. São ‘pedaços’. Já não estão inteiros. Se já não os queremos e estão partidos o melhor seria meter tudo no lixo, reciclar, deixar espaço para outras coisas, outras pessoas, outras memórias, mas no fundo talvez o que se quer, quando se leva tudo para cima, é apenas guardar, meter à espera, suspender as emoções que cada coisa nos causa. Não sei se é exactamente com esta intenção que guardo coisas, umas atrás das outras. Acho que não. Mas eu também achava que olhar para elas seria uma feliz viagem, e muitas vezes não é. Abrimos feridas de décadas. Vivemos sofrimentos de alturas em que tudo nos fazia mal. As coisas menos boas fazem parte de nós, do nosso sótão, mas as boas também. É isto que equilibra. Se de um lado está uma caixa cheia de porcaria onde não encontramos um motivo para levantar os lábios e sorrir, do outro está uma gaveta com postais, fotografias, cartas, bilhetes, folhas de papel, que se fecharmos os olhos viajamos. Sou dos que sente o momento quando olho para uma coisa guardada no tempo. Acho que afinal já sei porque as guardo. Para voltar a elas. Noutro canto, cabides cheios de roupa que nunca mais vou usar, mas que tem história. Um cachecol verde, um punhado de lenços, umas camisas com quadrados, um casaco preto a imitar cabedal, velho, gasto, partido, ténis quando usava All Star, uns velhos. Muito gastos e sujos de histórias nos pés. Outros novinhos em folha. A roupa tem o cheiro do tempo em que usava outro perfume. Arrepia-me a capacidade que tenho de viajar no momento. Faz-me confusão porque a raiva, o ódio, o medo, os receios, as certezas voltam todas em catadupa quando vejo uma caixa cheia de coisas lá dentro que estão fechadas há anos. Eu tenho diários. De toda a vida. Se os abrir agora sou capaz de ficar aqui até chegar o Natal. Sempre escrevi muito, não me importa se bem ou mal, mas sempre escrevi. Meti no papel, que sempre foi o melhor amigo, as emoções que tinha, o que queria, o que sentia, o que acontecia. Tudo. As vezes que acordava de noite a sonhar, as noites que rezava horas seguidas porque sabia que se pedisse muito acontecia, os desejos no papel repetidos, as prestações apontadas do que fui comprando. As contas da primeira casa, as primeiras maquinas, o primeiro carro. Tenho tudo escrito, tenho tanta coisa impressa a tinta em folhas de cadernos inteiros. Isto não deito fora nunca, um dia alguém vai ler e achar que eu tinha muitos motivos para fazer coisas que fiz, que tinha mais dúvidas do que se imaginava, sabia coisas e fiz outras que ninguém desconfiava, vão encontrar respostas para a razão das minhas escolhas em cada altura. Tenho pessoas e números de telefone em agendas de papel com anotações de gente que achei que estaria na minha vida para sempre, e que hoje não está. Pessoas que olhamos em fotografias e pensamos ‘quem é esta pessoa?’, colegas de escola, amigos de rua, companheiros de trabalho, pessoas da vida… Cuidado! O sótão dá a volta à cabeça de qualquer pessoa que tenha a cabeça desorganizada. Eu costumo gabar-me aos meus amigos que tenho tudo no lugar, até a cabeça. Mas gosto de a desarrumar. Acho que subir as escadas e vir arrumar o sótão é desarrumar o resto. É voltar a sentir a bagunça no peito porque quando chegamos perto de coisas destas sentimos sempre que vivemos outra vez as coisas das quais não nos despedimos e estão nestes caixotes que têm dentro as coisas todas com tudo o que lhes está ligado É uma chatice, mas eu sou assim, não sou diferente da maioria das pessoas que tem espaço em casa para ter um sótão. Aqui em cima o tempo passa vagarosamente rápido. É estranho, mas é isso. Parece que o relógio anda para trás e para a frente como se fosse um carrossel estragado que insiste em deixar a mente tonta, o coração às voltas e a garganta apertada. Quando desço as escadas, não deixo a porta aberta. Digo a mim mesmo que não volto as volto a subir durante uma data de tempo, faço cara de convencido e aposto que está tudo onde deve estar. Que aquilo já foi e que já não será nunca mais. Raramente me arrependo de ter subido as escadas, mas arrependo-me muito de ter guardado algumas coisas. Eu sou assim, é assim que gosto de ser, que gostam de mim e que não gostam também. Não me adianta fugir de mim nem daquilo que guardo meu. É a minha história e sou dos que acha que só encontramos um lugar onde quer que seja, se tivermos uma história colada a nós. Este subir de escadas é ir longe, muito longe, às vezes longe demais… mas faz falta. Eu acho que faz, porque toda a vida tive sótão e mesmo quando vivia num quarto arrendado, o sótão estava todo dentro de mim e as caixas num armazém. Não vivia bem comigo. Senti que o que era meu não estava no lugar que lhe era devido. Disparate não é? São só gavetas, caixotes empoeirados, roupa que já não usamos, coisas ali postas um dia qualquer só porque sim. Porque haveria eu de me preocupar com elas? Vou descer!
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