… Falemos do que temos dentro (Quando temos de verdade)

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… Falemos do que temos dentro. E o que é que temos dentro? Não sabemos. Nunca sabemos até que alguém chega e nos abre por completo, nos rasga a carne sem pedir licença e nos escancara o sorriso sem bater à porta, porque sabe que se batesse não era aberta, porque entretanto espreitámos muitas vezes por um postigo e sorrimos devagarinho, mas não abrimos. Não queremos abrir, porque temos a casa limpa, arrumada, não apetece agora que alguém aqui venha desarrumar tudo, deixar pegadas no chão. É confortável estar quieto, limpo e arrumado. Falemos do que temos dentro, quando dentro achamos que temos tudo no lugar certo, em gavetas organizadas, em cabides pendurados, em prateleiras de cristal, quando na verdade temos uma arrumação perfeita, automática, sem alma e sem o correr quente do sangue nas veias. Essa arrumação tem tanto de bonita como de fria. Falemos do que temos dentro, quando dentro achamos que não temos espaço para ter dentro mais nada, e de repente damos connosco a afastar móveis e caixotes e a abrir uma clareira para ver crescer quem chega devagarinho, como se fosse uma semente a crescer, que depositamos num vaso de terra molhada. Uma espécie de planta trepadeira. E cresce, cresce, e decidida vai trepando por todos os órgãos que temos encaixados dentro de nós, abre veias, mistura-se no sangue que quente nelas corre e ganha espaço enquanto olhamos quietos e incrédulos. Falemos do que temos dentro, quando dentro achávamos que não tínhamos nada porque em tempos nos tinham roubado tudo. Falemos agora do que temos dentro, fechando o postigo, correndo por dentro o trinco da porta, abrindo-a depois de par em par, para deixar entrar porque, assim, ficamos com espaço para que o que achávamos que tínhamos dê lugar ao que temos de verdade agora. Falemos do que temos dentro. Mas falemos apenas quando de facto temos alguma coisa. Caso contrário não é falar. É desconversar.

 

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